Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/29791
Marcha Patriótica
Em entrevista, Olga Betancourd discorre sobre o trabalho desenvolvido pela Associação Nacional de Deslocados Colombianos (Andescol) diante de um conflito que já dura 60 anos
10/09/2014
Na Colômbia, há mais de 60 anos se produz um confronto armado que se assemelha a uma guerra civil entre o Estado colombiano, as guerrilhas e os grupos paramilitares.
Comunidades camponesas, indígenas e afrodescendentes originárias das diferentes regiões da Colômbia acabam ficando no meio deste constante confronto armado.
A partir do acirramento na intensidade da guerra no país, essas comunidades têm sido forçadas a sair de seus territórios ancestrais como única forma de salvar suas vidas.
Tais comunidades, em sua grande maioria rurais, acabam se deslocando forçosamente para a periferia das principais cidades do país, ficando em condições de extrema pobreza e tendo que enfrentar as outras violências próprias das cidades (desemprego, exclusão, marginalização).
Olga Betancourd é uma das líderes de uma das organizações mais representativas do deslocamento forçado da Colômbia, a Associação Nacional de Deslocados Colombianos (Andescol). Na entrevista a seguir, ela relata o trabalho desenvolvido pela associação
Brasil de Fato – Qual a importância da Andescol no contexto atual da Colômbia?
Olga Betancourd – A Andescol é uma organização de vítimas de deslocamento forçado que tivemos que fugir em direção às principais cidades da Colômbia por causa da guerra. Temos uma história de luta e de resistência de 15 anos pelo reconhecimento dos nossos direitos fundamentais violentados, principalmente, o direito à vida e ao morar nos nossos territórios. O objetivo da nossa organização é o de dar visibilidade ao descolamento forçado, reconhecido legalmente como um crime que atenta contra a humanidade, por meio de ações políticas de resistência tanto no interior do país quanto aquelas realizadas por aqueles que tiveram que sair do país em condição de exilados ou refugiados. Temos também o objetivo de incidir no cenário político do país, para que o Estado solucione esta grave crise humanitária que atinge na atualidade 10% da população colombiana, seja por meio de políticas públicas efetivas que atendam as vítimas do deslocamento forçado ou pela solução definitiva do conflito social e armado no território nacional.
Qual é a leitura da Andescol sobre o processo de negociação da paz entre o Estado colombiano e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia)?
As palavras do representante do governo no início do processo de paz foram: “Nem o modelo econômico, nem a doutrina militar, nem a inversão estrangeira estão em discussão no processo de paz em Havana”. E são precisamente estes três pontos, os que, a nosso ver, atravessam a problemática atual do descolamento forçado na Colômbia. Existem vários fatores em nosso país que geram o deslocamento forçado. O primeiro tem a ver com a política nacional armamentista e os planos estratégicos de guerra, como é o caso do Plano Patriota. O segundo, a presença e consolidação no território nacional dos exércitos ilegais nomeados paramilitares, que têm sido encarregados, com o apoio financeiro e militar de vários representantes do Estado assim como de empresários e investidores, de fazer “aquelas tarefas” que não podia fazer legalmente o Exército colombiano. Todos esses interesses e alianças diretas, justificadas com a desculpa de retirar o suposto apoio “das comunidades” às insurgências, têm gerado, além do deslocamento forçado, milhões de assassinatos e massacres às comunidades que nasceram na maioria dos territórios rurais da Colômbia. Todos esses interesses e alianças não vão acabar com a assinatura de um acordo de paz, porém, a não presença da insurgência como organização clandestina no território nacional obrigará o Estado a responder ao povo colombiano pelos crimes de “lesa-humanidade”, que não querem reconhecer até hoje.
Há ocorrido algum avanço real desde que o novo governo tomou posse?
Com o atual governo, deu-se a Lei de Vítimas e a restituição das primeiras terras apropriadas a partir de deslocamento forçado. Este é um importante passo para a reivindicação das vítimas deslocadas forçosamente, porém na sua execução foram assassinadas 62 pessoas que exigiam suas terras. É com fatos como este que queremos dar visibilidade, mais uma vez, ao fato de que não é apenas uma questão de acabar somente com a insurgência, já que muitas das condições nas quais nos encontramos na atualidade são de responsabilidade tanto pela ação quanto pela omissão do Estado colombiano.
Os membros da Andescol sofrem algum tipo de ameaça?
Por conta de nossas reivindicações, apesar de nossa luta ser justa e necessária, temos sido objeto de perseguição política, de assassinatos e de julgamentos de vários companheiros da organização. Esses crimes contra nós são sempre justificados institucionalmente pela luta do Estado contra o narcotráfico e o terrorismo, só que a grande maioria das vítimas tem sido as povoações originárias dos territórios rurais na Colômbia.
Quais são as propostas de Andescol quanto à construção de um espaço de unidade entre as vítimas de deslocamento forçado na Colômbia?
No contexto político de hoje, achamos que nossa proposta organizativa continua sendo importante para a luta das vítimas do deslocamento forçado em geral, já que o número de pessoas atingidas diretamente pelo conflito político, social e armado corresponde aproximadamente a 6 milhões de pessoas. Neste sentido, a Andescol mantém como pauta permanente a luta pela paz com justiça social – um sonho para todos os colombianos, ainda mais para nós vítimas do deslocamento forçado. Por isso oferecemos um apoio irrestrito aos diálogos de paz em Habana ao mesmo tempo em que exigimos o cessar-fogo porque o confronto armado continua gerando mais vítimas diariamente.
Também temos como bandeira de luta o retorno aos nossos territórios de origem, com dignidade e garantias, ao passo que sejam respeitados os nossos direitos fundamentais, econômicos e sociais estipulados na Constituição: direitos básicos como saúde, educação, soberania alimentar e soberania para nos mobilizar livremente pelo território nacional.
O que vocês entendem especificamente por “paz com justiça social”?
A paz com justiça social tem que resolver as problemáticas socioeconômicas dos cidadãos, isto é, tem a ver com a possibilidade de comunicar todas as regiões do país, de ter as máquinas necessárias tanto para a produção agrícola quanto para a transformação de matérias-primas, de ter a possibilidade real de gerar empresas nacionais dirigidas pelas mesmas comunidades. Esta questão é colocada porque, por estarmos há muito tempo fora dos nossos territórios de origem, não tem sido possível estudar e, portanto, nos qualificar nas cidades. Como camponeses, achamos ser possível viver dignamente no campo, de produzir em larga escala alimentos orgânicos a partir das comunidades e, além disso, reconstruir nossas relações familiares, organizativas e sociais.
O que fazer para que o conflito, uma vez resolvido, não volte a acontecer?
Acreditamos que o retorno para nossas terras deve trazer consigo a possibilidade de avançar em relação à verdade, à justiça e à reparação a partir dos nossos próprios relatos sobre os acontecimentos. É muito importante poder escrever a memória histórica do deslocamento forçado a partir de uma pesquisa total e aprofundada, a partir do relato da maioria das vítimas. Nesse sentido, a Andescol se soma à proposta de criar uma comissão que estude a origem do conflito armado no país para que a verdade possa sair à luz e estes crimes não se repitam nunca mais na Colômbia. É por isso que a Andescol também incentiva a realização de uma Assembleia Nacional Constituinte, como um exercício de poder político a ser exercido pelos colombianos e colombianas na construção de um país com justiça social. É esta a nossa bandeira de unidade de luta a partir de nossa situação de vítimas de deslocamento forçado. Essa assembleia poderia legitimar a defesa pela soberania nacional, isto é, a soberania alimentar, a nacionalização dos nossos recursos naturais e a reestruturação de todas as instituições do Estado. Só assim, poderíamos avançar na transformação das políticas econômicas, políticas e sociais que respondam positivamente a questões vitais e que têm relação direta com o desenvolvimento geral do país e a qualidade de vida dos seus cidadãos. Em muitas ocasiões, tem sido possível conferir, por meio de pesquisas judiciais, o alto grau de corrupção, clientelismo, paramilitarismo e narcotráfico de vários representantes políticos do Estado colombiano, práticas que são muito negativas para o desenvolvimento econômico, político e social do país. Nesse sentido, mantemos o anseio infinito na procura de uma paz com justiça social na Colômbia. Os deslocados forçados fazemos parte de uma mesma classe, uma mesma história, uma mesma pátria. Somos tradição de luta, exemplo fidedigno de resistência por um mesmo sonho: uma Colômbia livre, digna e soberana.
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