Autor:
Francisco Toloza
“Tudo
que existe merece perecer”. Federico Engels
Sem
dúvida, todos que –como eu– conseguiram sair vivos e sensatos dessa máquina de
destruição que é o sistema penitenciário, mantêm o imenso compromisso de lutar
dia a dia pela liberdade dos milhares de homens e mulheres reduzidos na sua
humanidade pela insânia do regime jurídico colombiano vigente.
Eu
estava em dívida com meus companheiros retidos pelo Estado. Também é preciso
agradecer a grande solidariedade nacional e internacional recebida, a qual
–acima de tudo– sinto como um grito dos espíritos livres que acompanha aos
prisioneiros políticos colombianos. Também é uma expressão de apoio à Marcha
Patriótica como alternativa política para a transformação, e como um clamor
para a autentica democratização de nosso país, o que implica o mais profundo e
necessário redesenho do sistema judicial e penitenciário.
Seria
muito difícil saudar individualmente a todas as organizações, partidos,
coletivos e personalidades da Colômbia e do mundo que se posicionaram contra
minha detenção e processo judicial –o qual continua a pesar de eu já estar em
liberdade. Mas, sou muito grato a cada um deles, em meu nome e de todo o povo
colombiano, que continua lutando pela tomada do poder, assim como em nome do
conjunto da população carcerária submetida à ignominia irracional e cotidiana
dos presídios e, especialmente, em nome de todos os presos políticos do país,
cuja libertação continua a ser uma condição necessária para uma paz verdadeira,
estável, duradoura e democrática na Colômbia.
Apresento
para o debate público um primeiro texto sobre a situação geral dos presídios
colombianos, sua profunda crise e necessidade da transformação estrutural, em
que a demolidora frase de Engels toma um sentido pleno na medida em que
mergulhamos nessa realidade, na qual não deveria restar pedra sobre pedra. Posteriormente
virão outras notas sobre o problema particular da criminalização e os presos
políticos, justamente quando o país discute a possibilidade de chegar ao fim do
conflito.
A aguda crise do sistema penal e penitenciário
colombiano
Essa
política criminosa liberticida, além da ampliação sistemática dos crimes e os castigos,
se caracteriza pela apreensão até mesmo de pessoas que encontram-se na fase do
processo judicial, mas sem ter sido julgada a responsabilidade em qualquer
crime, o que faz com que hoje 30.8% dos reclusos que lotam os presídios sejam
somente indiciados. São mais de 36 mil pessoas que pudendo se defender em
liberdade aumentam a superlotação dos presídios colombianos sob a questionável
figura da prisão preventiva, no meio à irresponsável estigmatização de “perigo
para a sociedade” feita por fiscais, quem parecem trabalhar numa cadeia
fordista de decretação de prisões preventivas. A obsessão dos legisladores e do
judiciário pela prisão e tal que nem mesmo as condições excepcionais que
deveriam paliar esse drama, conseguem mitigá-lo: os doentes graves experimentam
uma versão penitenciária do chamado [literalmente] “passeio da morte” antes de
ganhar a liberdade; enquanto que hoje em dia 155 crianças menores de 3 anos são
prisioneiras junto com suas progenitoras, mais 100 mulheres são gestantes trás
as grades e inúmeros menores tem sido arrancados das mães, tudo isso no meio a
inexistência de uma regulamentação mais humana nesses casos.
O
panorama é de superlotação: 117 mil presos –intramuros– para apenas 75 mil
vagas, com uma superlotação nacional de 55, 6% (um excesso de mais de 40 mil
reclusos), mas que em alguns presídios pode chegar até 400%. Esse gigantesco
dado, somado aos mais de 30 mil presos em prisão domiciliar –extramuros–, torna
a Colômbia num Estado carcerário e punitivo sem igual em América Latina. Pela
quantidade de pessoas presas, a Colômbia ocupa o terceiro lugar na região
–depois do Brasil e do México– e o 13° no mundo, enquanto que em termos de
superlotação, ocupa o 8° lugar no mundo. De longe, a Colômbia é o país com
maior número de prisioneiros por habitante em América Latina e basta lembrar
que essa crise foi declarada faz já 16 anos, quando a mesma Corte
Constitucional na sentença T-153/98, decretou a existência de um “estado de
coisas inconstitucional” nos presídios colombianos devido à superlotação, que
naquele momento era de 41%.
A
superlotação somente traz mais penúrias aos encarcerados. 45% dos reclusos não
tem acesso a qualquer atividade de ofício para descontar a pena. Os internos
moram em menos de 3,4 metros quadrados definidos como mínimos pelo Comitê
Internacional da Cruz Vermelha. As condições de salubridade são precárias,
especialmente em presídios como La Tramacúa na cidade de Valledupar no norte da
Colômbia em que o fornecimento de agua é insuficiente e é usado como mecanismo
de controle dos presos, e as doenças epidêmicas coisa de todo dia nos pátios
dos diferentes presídios. Enquanto isso, o atendimento à saúde entregue em
concessão à EPS Caprecom, famosa pelo descaso e corrupção, continua tirando a
vida –direta o indiretamente– dos presos que não recebem o atendimento
adequado. Sem falar da evidente violação ao direito à intimidade nos pátios
superlotados, em que são suprimidas as visitas conjugais e em que qualquer tipo
de visitante é submetida a todo tipo de tratamento degradante. A mesma Corte
Constitucional protegeu esse direito dos detentos na sentença T-815/13 a
propósito da existência de apenas 20 locais “liberados” para a visita conjugal
para os quase 5 mil detentos da prisão Picota em Bogotá. O mesmo acontece com
as múltiplas sentenças sobre saúde, deslocamentos para hospitais ou até a
liberdade foram até agora flagrantemente descumpridas pelas instituições
carcerárias.
Diante
desses dados com certeza os defensores deste irracional modelo punitivo
exigirão a construção de mais cárceres –embora que neste momento estão sendo
construídos 9 novos presídios– e pedirão que mais recursos sejam repassados
para o Instituto Nacional Penitenciário – INPEC, o que hoje representa um sangramento
orçamentário que chega ao bilhão de pesos. Mas o problema é bem mais complexo e
insustentável para o Estado colombiano: em um país com apenas 30 universidades
públicas há 138 cárceres, dos quais 129 apresentam superlotação. Do ponto de
vista econômico, dados do Ministério da Justiça afirmam que uma vaga numa
prisão tem um custo para o país de 14 milhões de pesos por ano (aproximadamente
7 mil dólares), a mesma quantidade que é investida no mesmo período em 3,5
vagas nas universidades.
O
crescimento da população carcerária é exponencial: enquanto no ano 200 havia
aproximadamente 50 mil reclusos, hoje há aproximadamente 120 mil, ou seja,
houve um aumento de 140% da população carcerária. Os 11 presídios construídos
nesse mesmo período dobraram o número de vagas para reclusão de 38 mil para 76
mil, mas a superlotação subiu de 16% em 2001 para mais de 50% e o déficit de
vagas passou de menos de 7 mil para mais de 40 mil. Por trás do populismo
punitivo não apenas estão os interesses demagógicos de legisladores ociosos
ignorantes da problemática penal e criminológica, nem somente o viés
conservador que é próprio dos promotores das soluções de fato para os dramas
sociais, mas um projeto em andamento na Colômbia de um autêntico complexo
industrial penitenciário ou, como é bem definido pela lutadora norte-americana
Angela Davis, um lucrativo empreendimento do castigo: macabra empresa do
capitalismo em crise, que cria uma ampla massa “encarcerável” a partir da
sistemática exclusão social, para logo incorporá-los ao mercado através do
encarceramento maciço, o que implica grandes consumos e gigantescos lucros por
parte dos consórcios penitenciários.
No
ano 2000 no marco do Plano Colômbia, o Ministério da Justiça assinou o “Programa
para o Melhoramento do Sistema Penitenciário Colombiano” com a embaixada dos
Estados Unidos na cidade de Bogotá, por meio do qual USAIS e o Escritório
Federal de Prisões dos Estados Unidos financiaram e assessoraram um projeto
para a construção e/ou remodelação de até 16 presídios de segurança média e
máxima. A implantação desse novo regime carcerário que pomposamente o INPEC
chama de “Nova Cultura Penitenciaria”, não é outra coisa que uma cópia do
fracassado, nefasto e perverso sistema de prisões norte-americano, o qual tem
trás as grades a 1 de cada 30 cidadãos nos Estados Unidos: encarceramento
maciço, esquemas de isolamento social, duras restrições e controles para os presos,
privatização progressiva dos diferentes “serviços carcerários” e tratamento de
guerra para os detidos, através da militarização dos presídios, além de
transformações nos órgãos de custodia da prisão.
Para
além do excessivo gasto em concreto nos “mega-presídios” encontram-se os
meganegócios muito concretos das empreiteiras enquanto fornecedores dessas
instituições. Com a massificação da prisão, crescem os contratos e se
consolidam como um ramo da economia que lucra a partir da privação da liberdade
dos seres humanos, empreendimento que se acentua com a proliferação das
alianças público-privadas no nível dos presídios. Assim, engordam com as
prisões as grandes empresas colombianas ligadas ao complexo militar industrial,
ora de origem colombiano (empresas familiares, especialmente de ex-militares)
ou autênticas transnacionais do setor que blindam suas ações na bolsa de
valores com o número crescente de compatriotas privados de liberdade.
É
claro que, como é típico de Macondo, o plágio sai pior do que o original. É
copiado esquema restritivo, decalca-se a mercantilização das prisões e se imita
até a arquitetura, mas omitem os princípios básicos desse mesmo regime
penitenciário, ou seja, o mínimo vital ou a utilização plena do tempo do
detento. Coloquialmente nos pátios dos presídios colombianos se diz: “É um
modelo gringo (americano), mas sob administração do INPEC”. Instituição
ignorante até de suas próprias norma, de ineficiência contumaz e carcomida por
uma corrupção que chega a níveis de gangues. No interior dessa instituição
opera uma autentica “Cosa Nostra” que vira perseguidora cotidiana dos detentos,
advogados e visitantes que não aceitem estimular sua dinâmica mafiosa, mas que
ao mesmo tempo chega até os níveis mais altos da administração do presídio. Só
para exemplificar, durante o governo de Alvaro Uribe, na construção das 11
novas prisões e a remodelação de outras 19 houve um superfaturamento de mais de
1 bilhao de pesos; ou seja, 27 vezes o orçamento inicial, segundo a Contraloria General de la Nación. Também,
como esquecer que a diretora da infame prisão de Valledupar, Emilda Vásquez
Oñate, foi presa por tentativa de homicídio contra o chefe de vigilância desse
mesmo presídio, no meio a uma vendeta entre máfias e funcionários.
Este
mar de ignominias –que se pretende coroar importando prisioneiros da base
norte-americana de Guantánamo– é o que o establishment oferece como “opção de
paz” para os interlocutores na Mesa da Havana, em sua obsessiva insistência,
mas errada, em identificar as masmorras como conjuro infalível a todos os
problemas nacionais, quando por via de tribunos editoriais exige cárcere para
os subversivos com os quais atualmente dialoga, contrariando todas as
experiências de acordos internacionais a esse respeito.
Por um movimento nacional carcerário
Os
presos colombianos não perdemos a cidadania nem qualquer outro de direitos.
Somos sujeitos sociais e políticos, parte do povo soberano e do poder
constituinte. Portanto a degradante situação sofrida pela população carcerária
obriga à participação direta na busca de soluções. Os reclusos, os processados,
nossas famílias, nossos defensores, as organizações solidarias e até mesmo os
trabalhadores do INPEC, devemos ser atores dessa necessária transformação do
regime penal e penitenciário nacional, junto a outras vozes autorizadas como as
faculdades de Direito das universidades do país e os centros de pensamento, em
torno a esses temas tanto no nível nacional quanto no internacional, incluindo
a interessante corrente abolicionista que abre-se passo no nível global.
Na
base há dois aspectos iniludíveis para repensar a prisão: a causa e o fim
desta. A causalidade estrutural da crescente criminalidade não pode ser lida
como malignidade congênita, mas como produto da grave crise social e política
que precisa grandes mudanças em todos os âmbitos, longe da formula
unidimensional do presídio como saída para todos nossos problemas. A população
carcerária é principalmente um setor do povo colombiano que é mais vítima do
que vitimaria: antes que a formalidade legal nos declarasse “perigo para
sociedade”, a sociedade previamente havia sido um perigo real e efetivo para
nós.
Em
segundo lugar, ninguém deve esquecer que as penitenciarias não podem ser vistas
como depósitos sempiternos de homens e mulheres dissonantes com as normatividades
sociais impostas, mas que devem formar parte de um sistema integral de
ressocialização. Hoje ninguém pensa que os presídios colombianos sejam um
instrumento certo para corrigir o crime, mas ao contrário um caldo de cultivo
infinito para o crescimento delitivo. Impera a noção judeu-cristã do castigo
antes que a racionalidade da projeção de homens e mulheres novas que perderam
momentaneamente sua liberdade, mas que não devem por isso perder sua dignidade
nem seus direitos. Nesse sentido, mantêm-se esquemas disciplinares caducos e
irracionais nos que diz respeito a comunicação, socialização, cultura,
horários, etc., verdadeiras regras de panópticos do século XIX em meio a
fragilidade absoluta de projetos educativos e de emprego, ultrapassados pela
incontrolada superpopulação, chocando plenamente com a autentica possibilidade
de reinserção social.
Essas
realidades e esse marco de análise, unem por iguais aos presos sociais e
políticos colombianos cujas reivindicações básicas devem começar a ser ecoadas
para além das grades, como propõe o Movimento Nacional Carcerário: Solução
estrutural ao problema de superlotação por meio de reformas ao Código Penal;
adequação de infraestrutura levando em conta a atual população carcerária;
alimentação de qualidade, equilibrada e respeitosa das distintas dietas
especiais; regime especial de saúde e eficiente oferta de serviço médico;
garantias de comunicação; rejeição das transferências que afastam as famílias;
contra a tortura, o isolamento e outras formas de repressão contra os detentos;
pelo acesso à cultura, a recreação e o esporte; outorga efetiva aos processados
não condenados e
benefícios administrativos a todos os presos; vigilância por parte da população
carcerária sobre a administração da prisão e a necessária mesa de diálogo entre
o Ministério da Justiça e os presos. Esses são hoje os aspectos mais necessários
e urgentes.
Um regime legal e judicial ilegítimo que devemos
mudar
As
proeminentes mazelas apresentadas aqui são apenas a ponta do iceberg de uma
crise ainda maior: da justiça, das leis e, portanto, do mesmo Estado
colombiano. A crise legal e judicial deriva de uma profunda crise política que
se expressa no deplorável panorama penitenciário.
Não
podem ser legítimas as condenas quando o exercício da justiça na Colômbia é
ultrajado pela cooptação por parte de máfias legais e ilegais, interesses
clientelistas e do bloque de poder. É bem conhecida a crítica ao sistema
judicial por ter transformado o sistema de contrapesos institucionais num
verdadeiro carrossel da clientela política para benefício de todas as
quadrilhas que espoliam todas as instâncias do poder público. Além da
escandalosa politização de instituições como a Fiscalía, desde a época do fiscal Luis Camilo Osorio e a Procuraduría sob o comando de Alejandro
Ordóñez, quem atuaram e continuar a atuar como como inquisidores por meio do macarthismo
contra os presos políticos no país. Estes também exercerem sua função para
benefício da mídia que anima o errado populismo punitivo. Existe, menos ainda, a
chamada imparcialidade judicial na medida em que as forças armadas e
especialmente a Polícia Nacional –sob controle indireto da intervenção militar
norte-americana na Colômbia– são criadores de “evidencias” contra os
contraditores políticos. Basta lembrar o rol desempenhado pelo órgão de polícia
política –DAS– que hoje é exercido pela SIJIN, ou também quando os principais
criminosos do establishment são
protegidos juridicamente por inúmeros privilégios, aos quais não tem acesso os
processados que são cidadãos comuns.
A
cessão de soberania jurídica por parte do Estado colombiano por meio da figura
de extradição de nacionais e outros acordos de subordinação política, limita
efetivamente o exercício de aplicar a justiça. Ao mesmo tempo, a corrupção e o
clientelismo das altas cortes, que tem sido inocultável nos anos recentes,
evidenciam a ausência de meritocracia e controle popular nessa esfera, assim
como dificuldades de organização institucional e uma crescente infiltração de
empresas criminais em todos os níveis. Paradoxalmente, aos processados que
estão fora dessa cumplicidade com os poderes fáticos são exortados a confiar
numa salomônica administração de justiça desse aparato decadente, rendido aos
interesses imperiais e cuja legitimidade hoje é questionada até por setores do
mesmo establishment.
Também
pretendem nos inculcar a fé na lei, procurando que esqueçamos a origem desta: o
desprestigiado poder legislativo. O pode resultar de um Congresso de famílias e
pessoas como os Name, Ñoños, Gerleins, Obdulios, Palomas e Uribes? Qual é a
legitimidade de uma legislação criada por um parlamento eleito por menos do 40%
da população? Sem dúvida, estamos diante de um poder legislativo que não
representa os interesses das maiorias, que não é o Congresso de paz, nem da
transformação do regime penal e carcerário colombiano e que –muito pelo
contrário– cria mecanismos para que o sistema do qual tiram proveito continue
intacto.
São
espúrios esses órgãos públicos que tem criado e perpetuado o atual estado de
coisas, inclusive a continua e aguda crise carcerária. A solução real para
nossos problemas não virá desse poder constituído, mas de sua transformação
pelo povo soberano enquanto poder constituinte. A Colômbia precisa de uma nova
política criminal e carcerária que seja digna, assim como também um poder
judicial renovado e legítimo, ambos pensados com objetivo de alcançar um país
em paz. Os colombianos precisamos nos reinventar enquanto nação, refazer o
Estado e os poderes públicos. O cenário mais adequado para isso não são os já
gastos mecanismos institucionais atuais, mas um espaço democrático e
participativo para os cidadãos por excelência; ou seja, uma Assembleia Nacional
Constituinte que quebre de vez com as barreiras físicas e históricas que nos
oprimem. Enfim, precisamos uma nova carta magna para a paz e a liberdade.
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