9/17/2014

O crime do deslocamento forçado

Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/29791

Marcha Patriótica
Em entrevista, Olga Betancourd discorre sobre o trabalho desenvolvido pela Associação Nacional de Deslocados Colombianos (Andescol) diante de um conflito que já dura 60 anos
10/09/2014
Na Colômbia, há mais de 60 anos se produz um confronto armado que se as­semelha a uma guerra civil entre o Esta­do colombiano, as guerrilhas e os grupos paramilitares.
Comunidades camponesas, indígenas e afrodescendentes originárias das dife­rentes regiões da Colômbia acabam fi­cando no meio deste constante confron­to armado.
A partir do acirramento na intensida­de da guerra no país, essas comunidades têm sido forçadas a sair de seus territó­rios ancestrais como única forma de sal­var suas vidas.
Tais comunidades, em sua grande maioria rurais, acabam se deslocando forçosamente para a periferia das princi­pais cidades do país, ficando em condi­ções de extrema pobreza e tendo que en­frentar as outras violências próprias das cidades (desemprego, exclusão, margi­nalização).
Olga Betancourd é uma das líderes de uma das organizações mais representati­vas do deslocamento forçado da Colôm­bia, a Associação Nacional de Deslocados Colombianos (Andescol). Na entrevista a seguir, ela relata o trabalho desenvolvido pela associação
Brasil de Fato – Qual a importância da Andescol no contexto atual da Colômbia?
Olga Betancourd – A Andescol é uma organização de vítimas de deslocamento forçado que tivemos que fugir em direção às principais cidades da Colômbia por causa da guerra. Temos uma história de luta e de resistência de 15 anos pelo re­conhecimento dos nossos direitos funda­mentais violentados, principalmente, o direito à vida e ao morar nos nossos ter­ritórios. O objetivo da nossa organização é o de dar visibilidade ao descolamento forçado, reconhecido legalmente como um crime que atenta contra a humani­dade, por meio de ações políticas de re­sistência tanto no interior do país quan­to aquelas realizadas por aqueles que ti­veram que sair do país em condição de exilados ou refugiados. Temos também o objetivo de incidir no cenário político do país, para que o Estado solucione es­ta grave crise humanitária que atinge na atualidade 10% da população colombia­na, seja por meio de políticas públicas efetivas que atendam as vítimas do des­locamento forçado ou pela solução defi­nitiva do conflito social e armado no ter­ritório nacional.
Qual é a leitura da Andescol sobre o processo de negociação da paz entre o Estado colombiano e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia)?
As palavras do representante do go­verno no início do processo de paz fo­ram: “Nem o modelo econômico, nem a doutrina militar, nem a inversão estran­geira estão em discussão no processo de paz em Havana”. E são precisamente es­tes três pontos, os que, a nosso ver, atra­vessam a problemática atual do descola­mento forçado na Colômbia. Existem vá­rios fatores em nosso país que geram o deslocamento forçado. O primeiro tem a ver com a política nacional armamentista e os planos estratégicos de guerra, como é o caso do Plano Patriota. O segundo, a presença e consolidação no território na­cional dos exércitos ilegais nomeados pa­ramilitares, que têm sido encarregados, com o apoio financeiro e militar de vários representantes do Estado assim como de empresários e investidores, de fazer “aquelas tarefas” que não podia fazer le­galmente o Exército colombiano. Todos esses interesses e alianças diretas, justifi­cadas com a desculpa de retirar o supos­to apoio “das comunidades” às insurgên­cias, têm gerado, além do deslocamento forçado, milhões de assassinatos e mas­sacres às comunidades que nasceram na maioria dos territórios rurais da Colôm­bia. Todos esses interesses e alianças não vão acabar com a assinatura de um acor­do de paz, porém, a não presença da in­surgência como organização clandestina no território nacional obrigará o Estado a responder ao povo colombiano pelos cri­mes de “lesa-humanidade”, que não que­rem reconhecer até hoje.
Há ocorrido algum avanço real desde que o novo governo tomou posse?
Com o atual governo, deu-se a Lei de Vítimas e a restituição das primeiras ter­ras apropriadas a partir de deslocamen­to forçado. Este é um importante passo para a reivindicação das vítimas deslo­cadas forçosamente, porém na sua exe­cução foram assassinadas 62 pessoas que exigiam suas terras. É com fatos co­mo este que queremos dar visibilidade, mais uma vez, ao fato de que não é ape­nas uma questão de acabar somente com a insurgência, já que muitas das condi­ções nas quais nos encontramos na atua­lidade são de responsabilidade tanto pela ação quanto pela omissão do Estado co­lombiano.
Os membros da Andescol sofrem algum tipo de ameaça?
Por conta de nossas reivindicações, apesar de nossa luta ser justa e neces­sária, temos sido objeto de perseguição política, de assassinatos e de julgamen­tos de vários companheiros da organiza­ção. Esses crimes contra nós são sempre justificados institucionalmente pela luta do Estado contra o narcotráfico e o ter­rorismo, só que a grande maioria das ví­timas tem sido as povoações originárias dos territórios rurais na Colômbia.
Quais são as propostas de Andescol quanto à construção de um espaço de unidade entre as vítimas de deslocamento forçado na Colômbia?
No contexto político de hoje, achamos que nossa proposta organizativa conti­nua sendo importante para a luta das ví­timas do deslocamento forçado em geral, já que o número de pessoas atingidas di­retamente pelo conflito político, social e armado corresponde aproximadamen­te a 6 milhões de pessoas. Neste sentido, a Andescol mantém como pauta perma­nente a luta pela paz com justiça social – um sonho para todos os colombianos, ainda mais para nós vítimas do desloca­mento forçado. Por isso oferecemos um apoio irrestrito aos diálogos de paz em Habana ao mesmo tempo em que exi­gimos o cessar-fogo porque o confronto armado continua gerando mais vítimas diariamente.
Também temos como bandeira de lu­ta o retorno aos nossos territórios de ori­gem, com dignidade e garantias, ao passo que sejam respeitados os nossos direitos fundamentais, econômicos e sociais es­tipulados na Constituição: direitos bási­cos como saúde, educação, soberania ali­mentar e soberania para nos mobilizar li­vremente pelo território nacional.
O que vocês entendem especificamente por “paz com justiça social”?
A paz com justiça social tem que re­solver as problemáticas socioeconômi­cas dos cidadãos, isto é, tem a ver com a possibilidade de comunicar todas as regiões do país, de ter as máquinas ne­cessárias tanto para a produção agríco­la quanto para a transformação de ma­térias-primas, de ter a possibilidade re­al de gerar empresas nacionais dirigidas pelas mesmas comunidades. Esta ques­tão é colocada porque, por estarmos há muito tempo fora dos nossos territórios de origem, não tem sido possível estudar e, portanto, nos qualificar nas cidades. Como camponeses, achamos ser possível viver dignamente no campo, de produ­zir em larga escala alimentos orgânicos a partir das comunidades e, além disso, re­construir nossas relações familiares, or­ganizativas e sociais.
O que fazer para que o conflito, uma vez resolvido, não volte a acontecer?
Acreditamos que o retorno para nos­sas terras deve trazer consigo a possibi­lidade de avançar em relação à verdade, à justiça e à reparação a partir dos nos­sos próprios relatos sobre os aconteci­mentos. É muito importante poder es­crever a memória histórica do desloca­mento forçado a partir de uma pesqui­sa total e aprofundada, a partir do relato da maioria das vítimas. Nesse sentido, a Andescol se soma à proposta de criar uma comissão que estude a origem do conflito armado no país para que a ver­dade possa sair à luz e estes crimes não se repitam nunca mais na Colômbia. É por isso que a Andescol também incen­tiva a realização de uma Assembleia Na­cional Constituinte, como um exercício de poder político a ser exercido pelos co­lombianos e colombianas na construção de um país com justiça social. É esta a nossa bandeira de unidade de luta a par­tir de nossa situação de vítimas de des­locamento forçado. Essa assembleia po­deria legitimar a defesa pela soberania nacional, isto é, a soberania alimentar, a nacionalização dos nossos recursos na­turais e a reestruturação de todas as ins­tituições do Estado. Só assim, podería­mos avançar na transformação das polí­ticas econômicas, políticas e sociais que respondam positivamente a questões vi­tais e que têm relação direta com o de­senvolvimento geral do país e a qualida­de de vida dos seus cidadãos. Em muitas ocasiões, tem sido possível conferir, por meio de pesquisas judiciais, o alto grau de corrupção, clientelismo, paramilita­rismo e narcotráfico de vários represen­tantes políticos do Estado colombiano, práticas que são muito negativas para o desenvolvimento econômico, político e social do país. Nesse sentido, mante­mos o anseio infinito na procura de uma paz com justiça social na Colômbia. Os deslocados forçados fazemos parte de uma mesma classe, uma mesma histó­ria, uma mesma pátria. Somos tradição de luta, exemplo fidedigno de resistên­cia por um mesmo sonho: uma Colôm­bia livre, digna e soberana.

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